quarta-feira, 10 de junho de 2020

Aconchego


Aconchego-me de calças e meias
no torpor da noite
azulada
do teu corpo.
Preencho-me da linguagem terna
compartilhada
e fujo,
para dentro.
Estrela-anis,
coloriste-me a pele
do teu cheiro
e
penteada
de amor, adormeci.


Criança

Amor feito vida
Pureza vulnerável.
És esperança e alegria
num turbilhão de emoções.

Brinca e sente,
partilha quem és...
porque todos os sonhos do mundo
te pertencem.


Palavra,
parte de meu corpo escrevente.
Conjunto misto de sensações plenas.
O sentimento regista, a mente organiza
e a alma
pacifica.

domingo, 29 de março de 2020

Comunidade

Ser em comum não é uma comunidade. A partilha de locais, trabalhos, experiências torna-nos apenas
companheiros de viagem. Sozinho ninguém existe, só sobrevive. A existência é para ser sentida, vivida, partilhada e compartilhada. Nós e eu somos iguais porque temos de ser respeitados.Diferentes na individualidade, os mesmos na humanidade. 
Ser comunidade é olhar a multiplicidade de seres e apoiá-los, ampará-los, mesmo discordando, dando a nossa melhor versão. Viver em comunidade é sentir-me livre sendo eu mesma ,abraçando a liberdade do outro porque a transmissão de valores é essencialmente, um exercício do humano.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Química. A do coração. É na biologia que tocas mas é por dentro que os sentimentos tomam conta de mim. Há magnetismo na tua alma, que me prende.
No mundo escolheste ser dádiva porque és amor mas esqueceste-te do primeiro mandamento. Na íntegra.
Ó tu, com nome de discípulo, recorda os ensinamentos de Deus: a entrega amorosa deve incluir o próprio.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O dia de hoje faz-se lento, escrito com beleza de ser. Profundo.

A graça de um respirar, a grandeza de me sentir inteira, grata.


Olhei-te e percebi tudo o que sentia.


Olhei-te e amei quem era.


Olhei-te e o passado fez sentido.

A graça do teu olhar.

A ternura dos teus olhos.

A doçura da tua alma.

Os meus olhos acariciam-te, sabes?

O meu sorriso é-te atribuído.

domingo, 27 de novembro de 2016

Conto "Equívoco"


Equívoco

I

Sentada na cama do hospital a vida parecia imóvel. Apoderou-se de mim uma enorme dormência na cabeça, um peso. Seria cansaço? Ou peso? O peso dos dias. Um, depois o outro. E a seguir, outro igual. Chuva, vento, nuvens escuras intermináveis. Estava na presença do Inverno mais longo da minha vida. O sofrimento dos dias e da dor não ia passar.
 -Como vim aqui parar?
– A senhora sentiu-se mal. - Respondeu-me a enfermeira.
Está bem, penso. Então quero estar aqui. Só ficar. Estar, respirar e mesmo isso não me apetece. Permaneço aqui, apenas. Acabou-se. Tiraram-me a vida e não dei por isso.
Mesmo perante más notícias, desejo agora fugir à inquietude do ter de ser e fazer, do correr, correr, correr, correr ofegante, apressada pelas tarefas inadiáveis de todos os dias. As horas do dia eram as minhas ditadoras pessoais...onde estão agora!? Agora, bolas. AGORA!
Preciso da minha prisão para me sentir viva. Pior:  como queria sentir essa pressa, esse empurrar os minutos com a barriga bem espetada para fora, forçando, forçando, forçando. Agora isto, depois aquilo. Só posso considerar essa loucura sinal de saúde. Física, pelo menos.
Mas todas estas considerações serão para fugir ao que eu tenho de passar e continuar a sofrer. Respirar fundo e conseguir, corajosamente, encarar a dor de frente. Será o sofrimento atroz o caminho para a cura? Será esse o primeiro  passo necessário?
Olho em volta e vejo as nuas paredes azuis claras que carregam uma janela bem velha, descascada e pesadona de vidro fosco. A decoração pertence anos setenta, penso. As paredes têm um acabamento de tinta de areia...isto lembra-me a infância e, por isso, é acolhedor. Estou a ficar demente... Como pode a estadia num hospital estar a ser aconchegante?
Os doentes que vão aparecendo a meu lado, dormem, sedados por estarem, também eles, cheios de dores.
Isto que é eu queria...a dormência insconsciente da passagem das horas. Quero roubar-me uns dias e assim ficar adormecida. Talvez seja mais fácil depois. Adiar-me a vida uns dias. Semanas, talvez. Doces deambulações...
Foram doces e breves pensamentos pois, o som dos gritos dos doentes deste piso é a realidade que se me impõe. O silêncio que se ouve, depois disso, é pungente. A realidade pode revelar um quotidiano surreal a que temos que saber conviver  e adaptar.  
Talvez a loucura maior seja esta calmia interior axfixiante. Este pensamento traz-me um rasgo de sorriso aos lábios...toda a vida quis o silêncio.

II

Como a vida nos goza, ri-se de nós, qual criança de quatro anos, manipulando-nos. Que pureza e crueldade se retira desse riso estridente. A vida é passada a habituamo-nos a este tempo dado, emprestado e julgamo-lo eterno. Pensamo-lo nosso. Só perante a possibilidade da morte, da finitude deste processo, então, se encara, de  frente, a vida.
O que tem sido a vida? O trabalho exigia-me estar sempre rodeada de centenas de crianças que me pisavam, interpelavam, chamavam constante e interruptamente, desejando atenção.  Por vezes, às três de cada vez.
- Teacher, é a caneta ou a lápis?
-A caneta. A lápis é para os meninos do primeiro ciclo.
-Espera que eu já vou ter contigo.
Ainda há vida, sinto lá fora o barulho, as buzinas, o lufa-lufa, o trânsito, mas é para os outros. Eu quero terminar aqui. Desta forma: vestida de branco...as noivas é que se vestem de branco...ah, ah, ah...mato-me a rir, se não tivesse a maior vontade do mundo de desatar a gritar e a chorar. Mas acho que não devo. Aqui não. Na casa de banho, talvez.

III

Olho em volta e consigo fazer-me entrar na estreita toilet (como diriam os Ingleses), e constato o estado acelerado de sujidade em que se encontra. Ao olhar de frente ao espelho, dou comigo. Baixa, morena e, do excesso de peso, pareço atarracada. Prefiro evitar esta imagem e desvio rapidamente o olhar.
Não quero nem saber. Suja, servirá. Encosto-me à porta pintada de madeira castanha escura e respiro. Uma e outra vez. Então começo a sentir uma aquosidade súbita, quase inesperada a invadir-me os olhos. A seguir é a boca que começa aos espasmos, a fazer trejeitos. Aqui a água transforma-se em rio e corre face a baixo. Linhas e linhas de água corrente...depois os lábios abrem-se e saem uivos abafados de dor. Agarro o resto de papel das mãos existente e tapo a boca, gritando, gritando, babando o papel. Bolas, não tenho mais papel! Então as mãos terão de agir. Esta é a forma mais digna que encontro de agir na dor.
Quão fiel me sinto a mim, neste momento. Aqui, agora, sou eu. Cruel para todos seria se estivesse sempre a chorar assim, a gritar. A sufocar no choro. Não é que não houvesse compreensão por parte dos outros, eu é que não me aturaria. Como viver assim?
Aprendi a experienciar a dor mas escolhendo criteriosamente o momento de a encarar olhos nos  olhos.  Como humanos temos escolhas, até na forma de sofrer. A liberdade de escolha é uma premissa humana.

III
-Não quero. Nada nem ninguém.
-Visitas? Não quero ver os olhos de ninguém que me pertença. Não vou aguentar ser vista assim. – Respondo, às questões colocadas pelo enfermeiro.
-Consegui vir só, consegui ocultar os primeiros sintomas, as dores foram bem afogadas com Ben-u-rons, enganei todos durante algum tempo. E agora tenho de lhes dizer?
Não. O assumir, o dizer, o confessar, o explicar aos outros torna-se demasiado duro para ser verbalizado. Mais do que a doença, mais do que a dor. Já percebi o conteúdo da linguagem médica empregue quando me anunciaram mas não a quero proferir. Não no meu mundo.

IV

Em estado de choque, acho que agora começo a reagir à notícia dada.
Se é para ir, quero ir já. Hoje. Agora.
-Sra. enfermeira, sra. enfermeira! – Chamei. Posso fazer-lhe uma pergunta?
Quando vem Dr. Carlos fazer as rondas? Preciso de falar com ele.
-Amanhã, dona Carlota. Agora descanse.
Engulo a frase a contra gosto e olho para o copo de água baço com líquido de aspecto turvo, pousado em cima da cabeceira.
-E pode chegar-me aquele copo de água, por favor?
Hoje dormi mal. O barulho constante dos aviões e as ideias a fervilhar dentro da cabeça zonza não permitiram um sono descansado. Quem me dera ter pedido um comprimidinho miraculoso de sonolência induzida para não ter de passar por isto. Também mais um, que mal faria?
Levanto-me a custo após algumas tonturas mas resolvi insistir. Quiçá quanto tempo poderei andar ? Andar? Não. Vagueio incrédula pelos enormes corredores marmóreos do hospital, entre a vida e a morte. Para já, a morte do meu quotidiano.
Telefonei ao Pedro com algumas moedas que pousavam esquecidas na minha carteira preta, a que ele me tinha oferecido há alguns Natais atrás.
-Pedro? Sou eu.
-Carlota! Onde estás?
-Sabes eu não te quis dizer nada mas...
-O que foi, Carlota?
-Estou no hospital. Em Lisboa.
-O quê? Nas urgências?
-Não...estou mesmo internada...hummm...ando com umas dores...eles já sabem o que é.
-E então!?
-Bem...não há nada a fazer. E eu estou medicada. Para já parece estar a funcionar.
-O quê!??? Como foi isso? Eu não acredito.
-Bem, não queria que ficasses preocupado...
Despeço-me dele atabalhoadamente. O efeito da medicação está a passar por completo e dão-me tonturas atrás de tonturas até que caio ao chão desamparada. Inerte.


V

Acordo deitada no meu quarto ao final do dia e julgo já não ter grande autonomia e controlo sobre mim.
No silêncio do quarto onde o sr. Francisco e a sra. Quitéria descansam cheios de grandes doses de vários tipos de medicamentos, vocifero:
-Tirem-me daqui para fora! Eu não sou daqui! Dr. Carlos: quero morrer já!  Não podemos despachar já isto!?
No dia seguinte, o Dr. Carlos veio ver-me logo pela manhã e controlou-me a medicação através de um cateter doloroso que me deixa com grandes nódoas negras. Não sei mais onde enfiar aquilo. Julgo que as enfermeiras também procuram bastante várias alternativas.
-Dr., quero falar-lhe. Não sei quanto tempo aguento isto. Quero ir já.
-Aonde quer ir você?
-Embora. Faça-me isso. Não quero sofrer como eles.
Virei a minha cabeça em direção aos meu companheiros de quarto.
-Não ponha as coisas nesses termos, disse, fazendo sinal à enfermeira para me medicarem novamente. Senti a morfina a fazer efeito.
Segue-se mais uma sessão de tratamento. Radioterapia, desta vez.
A auxiliar conduz-me ao quarto, cumprimentando vários doentes pelo trajecto. Em breve, serei uma dessas pessoas conhecidas, marcadas, à espera...
Ao entrar no quarto, lá estava Pedro. O primeiro pensamento foi que para além de mal disposta ainda tenho de que lidar com isto.
-Por favor, tem calma. Estou com o estômago às voltas, bolas- disse-lhe.
-Não foste capaz de me dizer NADA!? Vinte anos! Vinte anos de casamento e não te dignaste a contar?
-Sempre disseste que eu era uma mariquinhas. De que serviria queixar-me? O resultado seria igual. Ao menos poupei-te ao calvário porque já passei. Infelizmente, não pude mais omitir.
-Não consigo perceber-te: isto não se esconde de ninguém! Qual confiança ? Isto não é uma brincadeira!
-Por isso mesmo. Os homens são fracos demais para assistir a isto.

VI

Falei com o director de serviço, sabes?  Veio assinar a tua alta.- Continua o Pedro. Parece que afinal podes tomar a medicação em casa.
“Go Home and die alone.”- pensei. Que vontade de rir...é irónico! Tudo na vida fiz acompanhada e agora este final.
Descemos ao terceiro piso, falo com a assistente do Dr. Carlos que me dá a autorização escrita para poder ir para casa.
-Vamos! – Disse ao Pedro. Podemos discutir mais em casa. Com mais privacidade...não é isso que queres?
Subo para buscar os meus parcos pertences e olho para o meu quatro  uma vez mais. Agora já não chove. Apesar das nuvens carregadas há pequenos raios de sol que teimam em aparecer e brilhar.
Pedro leva-me o saco da puma azul escuro rectangular e descemos em direção ao seu carro.
-O elevador está em manutenção, têm de ir pelas escadas.
O exercício não me amedronta...tenho feito algum ao longo do tempo, embora não de forma tão intensiva como devia. Mas gosto, decididamente gosto muito da prática de exercício físico, mas não por ser obcecada com o corpo. A bem da verdade, a gordura invade-me massivamente!
Escada abaixo lembro-me das saudades que sinto de uma boa aula de qualquer coisa, com qualquer instrutor. É neste momento que encontro-me com o Dr. Carlos que me questiona sobre a minha alta.
Sim, dr. , a sua assistente já-ma entregou.
-Parece que falta levar a vinheta, não reparou?
-Venha comigo ao gabinete que isto é rápido.

VII

Confiante da rapidez da pronta resposta do Dr. , segui-o. O Pedro aguardou em pé, empunhando o saco azul escuro. Apenas o telemóvel cheio de mensagens várias me foi devolvido.
Os corredores são estreitos e cheios de materiais para repor nos armazéns ou lavandarias mas ao fundo do corredor, antes do gabinete do médico, alguém deixou doentes nas macas, junto às portas que dão para as urgências. Belo local de passagem...isto só mesmo no nosso país.
Há dores patentes na cara dos pacientes e outros que já só parecem abandonados. Passo por todos eles e não consigo ficar indiferente. Tenho de olhar. Reconheço neles o que sinto, para além da física. A dor raramente é partilhada. Aquela solidão gritante da cara dos doentes.
Os pensamentos corriam a esta velocidade, quando o telemóvel vibrou. Eu estava só, à espera, até pensei o quão estranho haver tanta rede num hospital. Já que me encontrava à espera, atendi, escondida, junto duma janela de uma casa de banho. Uma chamada da minha irmã nunca é muito demorada. E não o foi.
Sara explicou-me que a polícia Suíça a tinha contactado. O meu mundo ficou em espera. A minha respiração ficou suspensa. Parece que encontraram a mala da minha mãe, alpinista experiente, na montanha Eiger. O corpo estava a ser procurado. Despedi-me da Sara e pedi para ser informada de mais notícias, assim que lhe chegassem.
-Dr. Carlos, por favor, bati à porta do gabinete. Tenho urgência na minha alta.
-Preciso de voar até à Suiça.
Afinal, vou ter de esperar. Os medicamentos terão de ser suficientes. A minha doença tem de aguardar. Não há grande lentidão na morte, pode até haver espectadores e mesmo haver pressa. Muita pressa. Sei mesmo muito pouco sobre a vida...